segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O anjo

O Espírito Santo é um Estado privilegiado no que diz respeito às belezas naturais; temos praias lindas e, a poucos quilômetros, montanhas igualmente belíssimas. E é nesse cenário de serras que início meu conto verídico.

Eu e meus amigos, como bons moradores do litoral, adorávamos subir as montanhas atrás das festas e mulheres bonitas que havia as centenas na época da invernada. Quase sempre saíamos na sexta após a faculdade para regressar no domingo. Íamos felizes da vida, tomando cerveja e ouvindo música sertaneja.

Outra coisa que era de praxe toda vez que não estávamos mais no nível do mar era entrar de penetra em festas particulares, tais como aniversários, formaturas e casamentos – um tipo de impostor do pânico na TV. Foi num desses casamentos que eu conheci alguém que me tirasse a vontade de sair atrás de tudo quanto é mulher bonita e ter olhos para apenas uma. Lá estava aquela moça, no auge dos seus 17 anos, sentada quietinha junto a algumas amigas. Possuía um rostinho tão angelical, branquinha de olhos verdes claros e umas sardas que davam um tom de inocência que me faziam suspirar. Sem vergonha alguma, puxei assunto – no momento que também descobri que sua voz e seu modo de falar acariciavam meus tímpanos – e depois de muita conversa consegui ficar com ela e pegar seu telefone.

Foram meses de muita conversa e alguns poucos encontros em festas. Como a saudade era de mais, resolvi visitá-la em sua cidade, que se encontrava a mais ou menos 100 km da minha, algumas vezes. Era a segunda vez na minha vida que gostava de verdade de uma pessoa – a primeira fora quando tinha apenas 11 anos, vide o conto "A moreninha". Certa vez quando estávamos nos beijando na praça de sua pequena cidade, a menina me convidou para voltar na próxima semana, pois ela me disse que haveria uma festa e gostaria muito que eu comparecesse. Ficava difícil dizer não e prometi fazer o possível para aparecer.

Planejei a semana toda, chamei mais um amigo e subimos a serra. No caminho, disse ao meu camarada que valia muito a pena ir e que confessaria meus sentimentos à moça, e proporia algo mais sério, apesar da distância. Antes de chegar, a mesma me ligou para certificar-se se eu de fato iria. A temperatura dentro da minha barriga estava ficando tão baixa quanto a que estava lá fora naquela fria noite de inverno. Lembro-me que até treinei o que iria falar com a minha paixão – usaria na fala, inclusive, um trecho da música pense em mim, para justificar a distância que morávamos: "Quem foi que disse que pra tá junto precisa tá perto?"

Chegamos ao destino. Mas não conseguia me comunicar com o anjinho, uma vez que, na região do evento, sinal de celular era uma coisa rara. A festa passando e nada de eu encontrá-la. Meu amigo começou a zoar dizendo que ela tinha me dado um bolo, mas eu estava tranquilo, pois sabia que aquela pessoinha não era capaz de fazer isso, até porque fora ela mesma que me convidara.

O tempo passava e comecei a me preocupar. Porém, em determinado momento, eu a vislumbrei sozinha, como se estivesse procurando alguém. Enfim, tinha a encontrado. Olhei pro meu amigo com cara de deboche e avancei no meu alvo, que naquela noite estava incrivelmente linda. Quando ela me viu, pareceu não acreditar. Pensei: é a felicidade em me ver. Coloquei meus lábios em direção aos delas, mas não os encontrei. Teria eu errado? Tentei novamente, sem sucesso. Ela estava se esquivando. Aquela coisinha me disse que não poderia ficar comigo com a desculpa esfarrapada que pensou que eu tivesse ido embora. O "não poder ficar" significa que já havia se pegado com alguém antes. Fiquei parado feito tonto, sem reação diante do imprevisto. Ela deu as costas e pareceu encontrar quem, na verdade, estava a procura, tascando-lhe um beijo ali na minha frente. Numa síndrome de poeta desiludido, ainda sussurrei: oh, meu querubim, por que batestes asas e voaste para longe de mim?

Foi um caso que gera muitas gargalhadas nos encontros com amigos até hoje, dada as circunstâncias e a forma grotesca que aconteceu. O meu amigo estava lá e pode relatar minuciosamente o que ocorrera para todo mundo naquele lugarzinho esquecido por Deus. Dizem alguns que foi o curioso caso no qual a pessoa levou chifre sem ao menos estar namorando.

Obviamente que o que essa menina fez comigo duvido muito que tantas outras façam da mesma forma, mas se engana quem pensa que hoje em dia ainda exista inocência nas jovens, sobretudo nas de rostinhos angelicais.

domingo, 23 de maio de 2010

O julgamento

O réu era trazido à sala de audiência com uma cara de espanto, parecia não acreditar no que os seus olhos vislumbravam, enquanto o juiz, promotor, advogado de defesa e oficiais de justiça faziam os últimos preparativos para dar início ao julgamento. Tudo pronto, o juiz deu iniciou:

–Senhor, lerei a breve peça inicial de seu processo: "João Pedro dos Santos, ex-brasileiro, ex-casado, ex-médico, em toda sua vida na Terra não acreditou na palavra de Deus, sendo um ateu convicto. Nestes termos, requer a condenação pela eternidade ao inferno." O senhor confirma a veracidade do que acabei de ler?

– Sim, excelência – respondeu o acusado sem levantar a cabeça.

– Pois é, excelência, esse é mais um desses milhares de casos que não necessitavam de julgamento, conforme diz em João 3:18 "Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” – afirmava o promotor de forma peremptória.

O juiz já estava abrindo a boca para sentenciar o réu, quando o advogado de defesa se levantou pedindo a palavra:

– Primeiramente, senhor promotor, todos nós sabemos que, embora João tenha dito isto, não podemos furtar o direito das almas de terem um julgamento com defesa, sobretudo porque o fato de simplesmente crer em mim não deve ser motivo suficiente para salvação. E, em segundo lugar, ainda desejo sustentar uma defesa ao réu que aqui está.

O promotor arregalou os olhos, pois imaginava que o advogado não se daria o trabalho de tentar defender um caso como aquele, uma vez que, por analisar os casos semelhantes anteriores, não havia muito que argumentar a favor daquela alma. Da última vez que o defensor interveio dessa forma, conseguiu acabar com a pena de reclusão ao inferno por toda eternidade, diminuindo-a para o máximo de 1000 anos, ainda que ele, o acusador, insistisse em colocar o pedido de "por toda eternidade" em suas petições.

Estava formado o embate. De um lado o promotor, com seu terno e livro pretos, assemelhando-se muito com aquelas figuras que pregam aos outros em templos lotados de fies, senão fosse por duas protuberâncias em cima de sua testa; do outro, o advogado de defesa com seus cabelos até os ombros e ondulados.

O promotor reiniciou:

– Não há defesa, excelência. O réu já confessou. Não é verdade, alma?

– Sim – respondeu o acusado agora levantando a cabeça –, porque em toda minha vida dei lugar à razão, e a existência de um ser supremo criador de tudo parecia-me demasiadamente inconcebível. E pra ser sincero, agora acredito muito na possibilidade de ser real a existência de tal ser mágico, porém não descartaria por completo a possibilidade disso tudo ser apenas um sonho.

– O seu corpo realmente está dormindo... eternamente, mas isso não é um sonho. Está vendo, excelência, não há porque perder tempo aqui; ele já se condenou. Até porque o nosso glorioso defensor (e legislador) já havia dito aqui que "ninguém vem ao pai senão por mim" – disse o acusador levantando o livro preto.

O advogado tomou a palavra:

– De fato, eu disse isso há 2000 mil anos e esse homem não era crente da forma como eu gostaria que todos fossem, sendo extremamente cético quanto às coisas divinas. Entretanto, devo dizer que ele "veio por mim". Explico: quando ele fora à África cuidar das minhas criancinhas – onde contraiu a doença que o levou a óbito – foi pelo simples prazer de fazer o bem, em busca da sensação agradável que surgia de seu interior quando, graças ao seu trabalho baseado em estudos científicos, arrancava sorrisos das pequenas faces castigadas por aqueles que diziam acreditar em mim. Esse sujeito praticou o maior dos ensinamentos, o principal deles – equivalente ao princípio da dignidade da pessoa humana na maioria das constituições terrenas –, "amar ao próximo como a ti mesmo", de uma forma verdadeira e por vontade própria, sem buscar recompensas.

O juiz, então, o absolveu, e aquele ex-médico foi o primeiro a morrer ateu e ir direto para o paraíso, sem nem quer passar um tempo no inferno ou purgatório.

Enquanto os oficiais de justiça batiam asas e conduziam o absolvido ao seu novo lar, o promotor trocava seu livro e vestimenta, já que na outra vara aguardava julgamento uma alma de turbante.

terça-feira, 30 de março de 2010

Meu Velório

Dizem que há coisas que não fazem muito bem a gente imaginar, mas algumas vezes nossa mente indomável não quer nem saber disso. Hoje estive imaginando o meu velório e queria que ocorresse algo nele.

Gostaria muito que em meu último adeus algum amigo – daqueles de verdade, que são pouquíssimos – se levantasse meio a choradeira geral e fizesse uma piada considerada de muito mau gosto, de preferência sobre minha terrível morte. É claro que o olhar de reprovação de alguns indicará que desejam enterrá-lo junto comigo – "Que momento mais inoportuno; falta de respeito". Mas não tem problema, pois certamente os mais próximos sorrirão, sabendo de minha aprovação por aquele ato. E não é falta de respeito com os meus familiares; é respeito comigo, que sempre imaginei a morte como uma piada. Vejam: temos planos para o dia seguinte, só que, de repente, por qualquer causa, morremos e, simplesmente, tudo aquilo que planejamos não vai dar pra fazer. Engraçado, né? Não? Pois é, talvez haja algumas piadas mais engraçadas. De qualquer forma, não queria que em meu velório houvesse tristeza, e, ser ela for inevitável, que ao menos por alguns instantes existam sorrisos, para quando, algum tempo depois, forem se lembrar de minha face gelada naquele caixão tenham motivo para sorrir.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Despertando do sonho

O céu incrivelmente lindo, as montanhas azuladas ao fundo e a grama verdinha. Por cima da relva, ela vinha em minha direção, segurou em meus braços e me puxou para o canto. Meu coração disparou. A menina pela qual eu era completamente apaixonado queria me dizer algo. Começou explicando que sempre me queria e que não gostava mais de seu namorado. Fechei os olhos e fomos de lábios em direção ao outro. Não sei se cheguei a sentir seus lábios tocarem nos meus, mas não deu para colocarmos nossas línguas além deles. O celular despertara na hora programada e me trazia de volta a realidade.

Devia acordar e ir trabalhar. Levar bronca do chefe mal humorado. Depois, ir à faculdade. No caminho do trabalho, percebia que o aparelho celular definitivamente não era meu amigo: além de me tirar o beijo, trazia a recordação da última ligação, na qual ela me dizia que gostava de mim mas não podia deixar o namorado.

Na noite seguinte ao devaneio, fechei os olhos na esperança de fechá-los novamente em meus sonhos para poder beijá-la. Mais uma vez o celular berrava em meus ouvidos anunciando a hora. Mas não sonhei. A noite fora vazia e fria sem os seus beijos e abraços.

Aproveitando o sábado de folga, decidi tornar o sonho realidade. Peguei o mesmo aparelho e liguei para a mulher dos meus sonhos. Comecei contando que havia sonhado com ela, mas fui interrompido. Dizia-me ela para não ligar mais, pois tinha namorado e que já me esquecera. Fechei o celular e acidentalmente o mesmo escorregou de minha mão, espatifando-se no chão. Dessa vez ele não despertaria, pois não era sonho; era um pesadelo real.