domingo, 23 de maio de 2010

O julgamento

O réu era trazido à sala de audiência com uma cara de espanto, parecia não acreditar no que os seus olhos vislumbravam, enquanto o juiz, promotor, advogado de defesa e oficiais de justiça faziam os últimos preparativos para dar início ao julgamento. Tudo pronto, o juiz deu iniciou:

–Senhor, lerei a breve peça inicial de seu processo: "João Pedro dos Santos, ex-brasileiro, ex-casado, ex-médico, em toda sua vida na Terra não acreditou na palavra de Deus, sendo um ateu convicto. Nestes termos, requer a condenação pela eternidade ao inferno." O senhor confirma a veracidade do que acabei de ler?

– Sim, excelência – respondeu o acusado sem levantar a cabeça.

– Pois é, excelência, esse é mais um desses milhares de casos que não necessitavam de julgamento, conforme diz em João 3:18 "Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” – afirmava o promotor de forma peremptória.

O juiz já estava abrindo a boca para sentenciar o réu, quando o advogado de defesa se levantou pedindo a palavra:

– Primeiramente, senhor promotor, todos nós sabemos que, embora João tenha dito isto, não podemos furtar o direito das almas de terem um julgamento com defesa, sobretudo porque o fato de simplesmente crer em mim não deve ser motivo suficiente para salvação. E, em segundo lugar, ainda desejo sustentar uma defesa ao réu que aqui está.

O promotor arregalou os olhos, pois imaginava que o advogado não se daria o trabalho de tentar defender um caso como aquele, uma vez que, por analisar os casos semelhantes anteriores, não havia muito que argumentar a favor daquela alma. Da última vez que o defensor interveio dessa forma, conseguiu acabar com a pena de reclusão ao inferno por toda eternidade, diminuindo-a para o máximo de 1000 anos, ainda que ele, o acusador, insistisse em colocar o pedido de "por toda eternidade" em suas petições.

Estava formado o embate. De um lado o promotor, com seu terno e livro pretos, assemelhando-se muito com aquelas figuras que pregam aos outros em templos lotados de fies, senão fosse por duas protuberâncias em cima de sua testa; do outro, o advogado de defesa com seus cabelos até os ombros e ondulados.

O promotor reiniciou:

– Não há defesa, excelência. O réu já confessou. Não é verdade, alma?

– Sim – respondeu o acusado agora levantando a cabeça –, porque em toda minha vida dei lugar à razão, e a existência de um ser supremo criador de tudo parecia-me demasiadamente inconcebível. E pra ser sincero, agora acredito muito na possibilidade de ser real a existência de tal ser mágico, porém não descartaria por completo a possibilidade disso tudo ser apenas um sonho.

– O seu corpo realmente está dormindo... eternamente, mas isso não é um sonho. Está vendo, excelência, não há porque perder tempo aqui; ele já se condenou. Até porque o nosso glorioso defensor (e legislador) já havia dito aqui que "ninguém vem ao pai senão por mim" – disse o acusador levantando o livro preto.

O advogado tomou a palavra:

– De fato, eu disse isso há 2000 mil anos e esse homem não era crente da forma como eu gostaria que todos fossem, sendo extremamente cético quanto às coisas divinas. Entretanto, devo dizer que ele "veio por mim". Explico: quando ele fora à África cuidar das minhas criancinhas – onde contraiu a doença que o levou a óbito – foi pelo simples prazer de fazer o bem, em busca da sensação agradável que surgia de seu interior quando, graças ao seu trabalho baseado em estudos científicos, arrancava sorrisos das pequenas faces castigadas por aqueles que diziam acreditar em mim. Esse sujeito praticou o maior dos ensinamentos, o principal deles – equivalente ao princípio da dignidade da pessoa humana na maioria das constituições terrenas –, "amar ao próximo como a ti mesmo", de uma forma verdadeira e por vontade própria, sem buscar recompensas.

O juiz, então, o absolveu, e aquele ex-médico foi o primeiro a morrer ateu e ir direto para o paraíso, sem nem quer passar um tempo no inferno ou purgatório.

Enquanto os oficiais de justiça batiam asas e conduziam o absolvido ao seu novo lar, o promotor trocava seu livro e vestimenta, já que na outra vara aguardava julgamento uma alma de turbante.